terça-feira, 21 de junho de 2011

Labirinto por Renato Van Wilpe Bach

Era tarde na casa de campo e uma complicada operação de troca de telefonemas e roupas deixava minha prima e sua filha assoberbadas; meus tios desdobrados em servir a todos. Eu vestira as vestes de Ghandi e optara pela não violência.
Por fim conciliamos tudo, e a jovem mulher, recém saída da adolescência, pegou carona conosco – toda linda. Mais tarde sairíamos sozinhos, eu e minha prima, ávidos por colocar em dia o papo dos tantos meses que ficamos sem nos encontrar.
Numa dessas viagens de carro entre a chácara e o centro, passamos pela lateral de uma vila quase centenária, pérola da arquitetura pontagrossense, construída em 1926 pelo industrial Alberto Thielen, nomeada em homenagem à sua esposa e ocupada por décadas pela Biblioteca Municipal.
Ali debaixo de suas palmeiras, nas tardes frias de minha cidade infantil, perdia-me nos clássicos, lia os Dumas, Jules Verne e Victor Hugo em livros publicados em Portugal nas primeiras décadas do século XX, belissimamente encadernados, parte da coleção doada pelo casal de professores à Biblioteca que se desfazia em poeira e fungos, inadequadamente emprestados a qualquer um. Graças a Deus. Minha mãe reclamava, não entendia como eu podia gostar tanto daqueles livros velhos, cheios daquela ortografia antiga… mas no fundo se enchia de orgulho quando entrava comigo lá e as moças da recepção diziam-lhe que eu era o leitor mais assíduo do lugar. Tanto subi e desci por sua grande escada em cauda de vestido de noiva que, se fechar os olhos, ainda posso sentir suas pedras, já gastas, sob de meus pés.
Mais de uma década atrás, a Vila Hilda foi alvo de um longo processo de reforma e restauração. A biblioteca que ocupara o casarão, foi transferida para uma casa também enorme, mas sem graça, setentista. Idealizada como herança de um casal de professores à cidade – os professores Bruno e Maria Eney, a Biblioteca perdia, com a mudança, o charme e o aconchego.
Anos depois revi a casa e estranhei a pobreza de espírito que norteara sua “recuperação”. Uma verdadeira desfiguração modernóide em que caíram muros e fecharam-se os porões do primeiro andar, abrigo de jornais e revistas ancestrais. Transformada em Fundação Cultural, sua visitação pública ficou reduzida a uma pequena ante-sala de onde não pude passar.
Nesta última viagem, então, olho pro lado e de repente vejo o querido muro da vila, com suas gradinhas artisticamente trançadas em Inglaterra, a mesma escada desgastada, o mesmo jardim. Imagino logo as maçanetas em prata de lei e porcelana pintada, o desenho esmaecido e amarelado pelo aperto de tantas mãos. Meu coração se aperta, perdido entre a verdade de minha visita anterior e ecos da “Sonata” de Veríssimo, um de seus primeiros e melhores contos, no qual o protagonista volta ao passado de uma casa e sua gente.
Pergunto a meu tio que lugar era aquele e ele fala que é a antiga biblioteca, a Vila Hilda. Conta-me uma longa história que envolve edifício restaurado, na antiga Estação Ferroviária, para onde a biblioteca fora recentemente transferida, mas já não escuto mais nada. Interrompo e conto minha história, falo da visita à casa desfigurada e de minha decepção – mas todos me garantem que tal fato nunca ocorreu. Não sei mais em que acreditar. Mas o coração se aquieta, antevendo uma nova visita a aqueles jardins de minha infância – os mesmos! – ainda que sem o recheio dos livros a ocupar o prédio.
Quando chegamos ao restaurante, o chope desce como um laxante d’alma a este homem que não sabe mais a que universo pertence, se tomou a pílula vermelha ou a azul… Ponta Grossa me espera, logo volto para lá.


(Publicado no caderno Almanaque do jornal O Estado do Paraná, Curitiba, em 25 de junho de 2006)


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